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VARIEDADE Segunda-feira, 02 de Abril de 2012, 10:41 - A | A

02 de Abril de 2012, 10h:41 - A | A

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Poesia e a compulsão pelo ato de ler



Essa é a história de um poeta que foi escrita numa tarde de sol, à sombra de um cajueiro. Não há aqui narrativa de todos os fatos e fados de sua vida, mas alguns que possam chamar atenção de eventual leitor de poesia. Glauber Lauria é essencialmente poeta porque ele se consagra à poesia. Ainda de posse de seus verdes anos de sua juventude ele é um leitor voraz, daqueles que causam inveja aos grandes leitores. De música ele sabe quase tudo e passeia do jazz com passagem obrigatória pela bossa nova, blue, música erudita e por aí vai a busca desse poeta. Quanto ao cinema ele começa por Glauber Rocha e passa por todos os clássicos possíveis, assim como nas artes plásticas, apenas para citar seus pendores imediatos.

Conheci Glauber quando servi a secretária de Comunicação da prefeitura de Barra do Garças. Ele cursava letras no campus da UFMT em Pontal do Araguaia. Marcamos um encontro para depois do expediente, para falar de livros. Uma semana depois ele jantava em minha casa onde saiu com uma braçada de livros que devolveu na semana seguinte. Esse sentimento fiel de afeição, apreço, estima ou ternura entre as pessoas, a que o mestre Aurélio define como amizade, foi a nossa gota d’água desde os idos de 2006.

Mas voltando à poesia, o menu existencial de Glauber, de início ele começa citando Homero, que não escreveu e o nascimento de sua poesia foi no cesto da oralidade, cuja obra que chegou aos nossos dias seja talvez o primeiro documento do mundo ocidental, a sua certidão de nascimento, o nosso Cânone, algo polifônico de nossa estética. “Para certa poesia a psicologia indica uma forma de catarse, a libertação de pensamentos e emoções que estavam reprimidos no inconsciente, seguindo-se alívio emocional. Não posso afirmar que todos os poetas são portadores desse consolo temporal”.

Sobre a ventura do ato de ler Glauber conta que sua mãe, Dione, quando acadêmica de pedagogia, em Mineiros, se deparou com autores grandiosos “e disse pra mim e meu irmão Douglas que a leitura poderia mudar nossas vidas. Ela trazia livros e informações para dentro da nossa casa”. Uma grande descoberta foi a ‘Coleção Vaga-lume’ “e de cara minha mãe me passou “Os barquinhos de papel”, que não li, dormia encima dele. Sua primeira tentativa não deu certo. Logo depois apareceu com outra estratégia de leitura em voz alta do livro “Bem-vindo ao Rio”, de Marcos Rey. Acabei me interessando porque a maioria dos nossos prazeres é da memória auditiva. Isso despertou em mim a noção de que na leitura haveria prazer”.

Esse prazer se tornou real com sua entrada na Biblioteca Municipal “Irmã Maria de Lourdes” de Mineiros, de onde começou a retirar livros induzido pela beleza do título, “por falta de orientação segura”. Aos treze anos descobriu que sua mãe lia escondido (em espanhol) “Cem Anos de Solidão”. Um exemplar de seu tio Giovane. Isso acontecia quando ele não estava em casa. “Por fim minha mãe conseguiu um volume em português e concluí suas últimas páginas na cumeeira de nossa casa de onde desci outra pessoa, transformada pelo condão do realismo fantástico de Gabriel Garcia Marquez, algo impensável para uma criança de meu porte”. [‘Cem Anos de Solidão’ conta a história de sete gerações da família Buendía no povoado fictício de Macondo, situado em algum lugar da costa colombiana entre os séculos 19 e 20].

Em poesia, sua primeira paixão foi o romântico, da segunda geração, Álvares de Azevedo com sua “Lira dos Vinte Anos”, uma poesia extremamente sensível 

[“Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã”] 

que levou o adolescente a pensar uma tatuagem do rosto do poeta no braço, “que depois desisti”. Em seguida vieram outros poetas como Neruda, Augusto dos Anjos, Florbela Espanca, Pessoa “que me foram os mais marcantes e comecei a ver o reverberar de um livro no outro”. Ele lembra que lia no banheiro o romance Hilda Furacão, de Roberto Drummond, quando o autor citou Neruda. “Naquele momento me pareceu o desvendar de uma profecia”.

Este poeta e leitor contumaz passou as férias de final em minha casa onde tem inteira liberdade, inclusive no que diz respeito aos livros. Eu disse férias, mas não havia citado ainda a Unirio onde ele cursa museologia. Na tarde dessa nossa conversa lhe perguntei de chofre se conseguiria parar de escrever e ele recorreu ao poeta alemão Rainer Maria Rilke na resposta que dera a Xavier Kappus que na dúvida de ser poeta ou militar recebeu de Rilke a indagação: “Morrerias se deixasse de escrever. Se a resposta for sim, és poeta, se não, poderá fazer outra coisa”. A resposta de Glauber: “Eu sempre estive ao lado de Rilke”.

Aos 23 anos, o torixorino Glauber publica uma edição de mil exemplares do seu “Jardim das Rosas em Caos”. Ele tem prontos “Mamilo do ser infame”, “Fantasia barroca”, “Ermos, paragens e solidões mato-grossenses”, “Lupanar de flores frívolas”, entre muitos outros a espera de edição, de um editor. Por onze meses esse poeta escreveu uma coluna sobre cultura no (extinto) jornal Expresso Araguaia. Inquieto, como se deve a maioria dos poetas que se conhece, Glauber passou essas férias vendendo zine de suas poesias e de outros na Praça do Garimpeiro de onde tirava o dinheiro para seu vinho tinto que lhe acompanhava nas leituras durante à noite.

Os desavisados ou malfeitos à poesia deixaram de adquirir o zine de Glauber Lauria que foi selecionado em um concurso em Salvador para o prêmio ‘Valdeck Almeida de Jesus’ e aparece no livro “300 poetas brasileiros” lançado na Bienal Internacional do Livro em 2011 no Rio de Janeiro. Além deste livro ele publicou também na antologia “Soco no Olho” que reúne 25 poetas de rua do Brasil. Um deles é mato-grossense: Glauber Lauria. O livro é belo, feito em papel reciclado e editado pela Geração Delírio.

Já que se falou em Mato Grosso é pertinente a pergunta sobre o que precisa ser feito para salvar a cultura no estado. “Não quero ser amargo, mas ela será salva pelos próprios poetas, pelos artistas. Em nossa terra a cultura é tratada com desprezo e somente os artistas são capazes de mantê-la viva como está viva a poesia de Silva Freira, de Ricardo Guilherme Dick, a poesia de Casaldáliga, de Paulo Gabriel, de João Bosquo, Alan Borges, Antonio Sodré, entre outros que cometo o desvario de não citá-los, pois me fogem agora à memória” desse poeta, uma das maiores expressões da poesia mato-grossense. 

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